Incidentes isolados

Feminismo  é a ideia radical de que mulheres são seres humanos.” (Deborah Cameron)

Se você lê notícias regularmente, pode ter notado que muitas mulheres morrem em ‘incidentes isolados’. Entre 22 de maio e 19 de junho, por exemplo, Melissa Belshaw sofreu ferimentos fatais em um incidente isolado em Wigan (um homem foi acusado mais tarde de seu assassinato); em Stockport, o corpo de uma mulher foi encontrado em um parque após outro incidente isolado (um homem foi preso pouco tempo depois); e em outro incidente isolado fora de Norwich, Gemma Cowey foi esfaqueada até a morte enquanto caminhava no terreno de um hospital psiquiátrico fora de uso (a polícia prendeu um homem que desde então foi identificado como seu marido)1.

Os casos que acabo de mencionar são apenas os três primeiros que encontrei quando pesquisei na cobertura de notícias recentes a expressão ‘incidente isolado’. Houve outros: na Grã-Bretanha, esses ‘incidentes isolados’ ocorrem a uma taxa de 2-3 por semana. ‘Incidente isolado’ é um jargão da polícia e visa tranquilizar: ‘não se preocupe, este assassino não é um perigo para o público. Ele só era um perigo para a mulher que ele matou’. Mas é também a abreviação de uma narrativa mais ampla que enquadra cada morte como uma tragédia pessoal única – uma relação que deu errado, um homem que não conseguiu lidar com uma dada situação, um ato de violência que, supostamente, ninguém previu (embora geralmente se verifique que a vítima previu, e não é raro que seus alertas não tenham sido atendidos). A existência de um padrão, sugerindo mais um problema social do que puramente pessoal, é efetivamente negada.  

Feministas argumentam há muito tempo que as narrativas que uma cultura constrói em torno da violência masculina contra mulheres são grande parte do problema. Este blog também usou esse argumento várias vezes antes – sobre estupro, assédio sexual, homicídios domésticos e assassinatos em massa perpetrados por autoproclamados ‘incels’ (celibatários involuntários). Histórias são poderosas, especialmente quando são constantemente repetidas. Mas o que eu quero perguntar neste post é: por que a mídia continua repetindo-as? 

Não é porque nunca ninguém se queixa. De vez em quando, o relato de um caso provocará um clamor. Em fevereiro, manifestantes no México atingiram os escritórios do La Prensa depois que este noticiou o assassinato de Ingrid Escamilla no Dia dos Namorados sob o título ‘Foi culpa do Cupido’. No ano passado, houve indignação em relação à cobertura da mídia sobre o julgamento na Nova Zelândia do homem que acabou sendo condenado por assassinar a turista britânica Grace Millane. Mais recentemente, a decisão do jornal The Sun de publicar um artigo de primeira página com o título ‘Eu dei um tapa em JK e não me arrependo’ (‘Eu’ sendo o primeiro marido de JK Rowling, cujo comportamento abusivo havia sido comentado pela autora em seu site) provocou mais de 500 reclamações ao órgão regulador de imprensa IPSO.  Mas o efeito, quando há, é geralmente de curta duração. Mesmo que a mídia tenha sido forçada a pedir desculpas por uma história, as mesmas narrativas reaparecem invariavelmente outra vez.

O artigo a que acabo de me referir sobre o julgamento Millane oferece uma explicação:

‘Infelizmente, o lucro é e sempre foi a única busca de qualquer veículo de notícias, e os apetites culturais por histórias com detalhes de violência contra as mulheres são aparentemente insaciáveis.’

Mas, embora eu não conteste a importância da motivação do lucro, acho que nós também precisamos prestar atenção à forma como as notícias são produzidas e à forma como certas narrativas se enraízam e normalizam através da rotina de relatos de casos ‘ordinários’.

Para explicar o que quero dizer, vou focar em um exemplo com o qual me deparei em fevereiro. Mais exatamente, vi a manchete que apareceu no The Independent: ‘Adolescente empurrou mulher da varanda depois que ela rejeitou seus avanços durante uma festa em casa’. O caso estava nas notícias porque o julgamento tinha acabado de terminar e o réu, Yusef Ali, de 19 anos, tinha sido considerado culpado de causar danos corporais graves à mulher de 18 anos que ele empurrou de uma varanda (ela caiu quatro andares até o chão, sofrendo ferimentos graves nas costas e no pescoço). Decidi olhar mais de perto a forma como essa história havia sido relatada em diversos meios de comunicação.

Escolhi este exemplo porque era ordinário: um caso típico do Tribunal da Coroa que não era visto como suficientemente digno de notícia para merecer cobertura da mídia (a não ser por um único detalhe ‘espetacular’ –a varanda – o caso poderia ter sido coberto apenas pela imprensa local). A amostra de reportagens que consegui compilar incluiu itens de dois jornais nacionais (o ‘de qualidade’ The Independent e o tabloide The Sun), dois jornais gratuitos voltados para quem se desloca de casa até o trabalho, utilizando transporte público (o Metro e o Standard) e um jornal local (Southwark News), mais o website de um canal nacional de notícias de TV (Sky) e – como exemplo de cobertura não convencional – o Christian webzine Joy 105.com.

Também encontrei dois outros textos importantes: as declarações emitidas no final do julgamento pela Polícia Metropolitana e pelo Ministério Público da Coroa. Eles são importantes porque ficou claro que tinham servido como a principal, se não a única, fonte para as reportagens na minha amostra. A pressão para minimizar os custos (que também significa custos com pessoal) tornou a mídia de notícias cada vez mais dependente de declarações oficiais e comunicados de imprensa. A menos que um julgamento seja um evento noticioso importante, é improvável que eles enviem uma repórter para observar o processo diretamente. Essa é uma das razões pela qual as reportagens são todas tão semelhantes: seus redatores estão trabalhando a partir das mesmas fontes, reproduzindo a mesma informação (completa com as mesmas lacunas) e não raramente reciclando grandes pedaços do texto, até mesmo palavras e frases individuais.

Antes de olhar mais de perto para algumas dessas palavras e frases, deixe-me delinear os fatos deste caso. Em agosto de 2019, Yusef Ali e um amigo alugaram um apartamento de quarto andar em um prédio em Bermondsey, onde planejavam sediar uma festa noturna. A notícia desse evento espalhou-se, e a jovem mulher que se tornou vítima de Ali estava entre uma série de pessoas que apareceram ‘despretensiosamente’. Segundo testemunhas, Ali começou imediatamente a assediá-la: ele agarrou o pescoço dela, puxou seu cabelo e deslizou sua mão através de uma fenda no jeans dela para tocar sua coxa, dizendo-lhe ‘isto é o que eu faço na cama’. Testemunhas descreveram que ela foi ficando agitada, mas também disseram que ela não deu uma resposta direta. Mais tarde, Ali entrou em uma briga com um grupo de homens; à medida que isso se intensificou, ele pegou uma faca da cozinha e começou a atacar as mulheres ali presentes indiscriminadamente. Outras convidadas começaram a fugir, inclusive a mulher que ele havia assediado. Mas enquanto ela esperava pelo elevador, ele correu para ela e a empurrou de uma varanda interna. Ele então tentou sair do prédio, mas a polícia tinha sido alertada e estava esperando para prendê-lo.

Quando o caso veio a julgamento, a corte ouviu que a jovem mulher tivera sorte de ter sobrevivido. Seis meses mais tarde, ela não estava mais em uma cadeira de rodas, mas ainda estava impossibilitada de trabalhar ou estudar. Evidentemente, ela havia sofrido um ataque muito sério e não provocado. Apesar disso, não foi bem assim que a mídia contou a história. A forma como ela foi contada reflete algumas suposições problemáticas sobre homens e mulheres, sexo e violência.

Para os objetivos deste post, vou me concentrar nas manchetes. Pesquisas têm mostrado que as manchetes são importantes (elas também são algo que os meios de comunicação normalmente não copiam dos comunicados à imprensa). Não apenas porque para muitas leitoras (aquelas que rolam a tela sem clicar) a manchete efetivamente é a história; pesquisas experimentais têm mostrado que as manchetes preparam até mesmo as leitoras que, de fato, leem a notícia para interpretá-la de formas específicas, e que a presença de detalhes explicativos na história nem sempre afasta suposições baseadas na primeira leitura da manchete. Com isso em tela, vamos dar uma olhada nas manchetes da minha amostra.

Adolescente empurra mulher da sacada depois de ela rejeitar suas investidas em festa (The Independent)

REJEIÇÃO DO MAL: Adolescente empurra menina, de 18 anos, da varanda de um apartamento de luxo a 12m de altura depois de ela ter desdenhado suas investidas em uma festa (The Sun)

Homem é declarado culpado por ter empurrado da varanda do quarto andar adolescente que rejeitou suas investidas (Standard)

Anfitrião empurrou garota da varanda depois de ela ter rejeitado suas investidas (Metro)

Homem empurra mulher da varanda do quarto andar na via Long Lane depois de ter feito investidas inapropriadas contra ela em uma festa (Southwark News)

Um homem foi condenado por empurrar uma mulher de 18 anos de uma varanda no quarto andar depois de ela ter rejeitado suas investidas e também por esfaquear duas pessoas em uma festa organizada por ele (Sky News)

Esse garoto de 19 anos estava flertando com essa garota de 18 anos: ela recusou e ele a empurrou de uma varanda (Joy 105)

Essas manchetes variam um pouco, mas também compartilham similaridades impressionantes. Mais notadamente, quatro das sete manchetes incluem a fórmula ‘rejeitar suas investidas’, ao passo que uma quinta, a do The Sun, oferece ‘ter desprezado suas investidas’. Southwark News tem ‘investidas inapropriadas’. Apenas a manchete de Joy 105 evita o termo ‘investidas’ (embora a palavra apareça na história, assim como ‘desdenhou’): em vez disso descreve o comportamento de Ali como ‘flertar’ e nos conta que a vítima ‘recusou’.

O fato de tantos relatos convergirem para a mesma fórmula ou fórmulas semelhantes sugere que os redatores estavam trabalhando com o mesmo modelo do Ministério Público da Coroa, que contém tanto ‘rejeitou suas investidas’ quanto ‘investidas inapropriadas’. Ele não tem ‘desdenhou’, mas realmente descreve Ali como ‘desprezado’ (‘um homem desprezado que empurrou uma garota de uma varanda após ela ter rejeitado suas investidas’). O modelo também descreve o comportamento de Ali em relação à vítima como ‘desrespeitoso’, e essa palavra também aparece em vários relatos.

A primeira coisa questionável disso tudo é o desajuste entre a linguagem e os atos que ela descreve. Em que universo agarrar pelo pescoço alguém que você nunca encontrou ou com quem você nunca falou, puxar seu cabelo e deslizar a mão por baixo de sua roupa consiste numa ‘investida’ ou num ‘flerte’? Esses termos pertencem ao léxico da paquera: eles denotam modos de sinalizar interesse sexual usando palavras, olhares, postura e talvez modos inofensivos de tocar, como parte de uma negociação que pode (ou não) caminhar para um contato físico mais íntimo. O que Ali fez foi muito mais agressivo: ‘inapropriado’ e ‘desrespeitoso’ nem chegam perto de descrever.

A segunda coisa questionável é o uso de ‘rejeitar’, ‘desdenhar’ e ‘desprezar’ para descrever a resposta da mulher para Ali. Mesmo o mais neutro ‘recusar’ sugere um nível de envolvimento que disputa com o que uma testemunha alegou sobre a resistência da mulher a ser inteiramente passiva. É um exagero equiparar a falta de resposta dela com ‘rejeitar’ ativamente, quanto mais ‘desdenhar’ ou ‘desprezar’ o assediador (verbos que implicam que ela tinha intenção de humilhá-lo). E essa equiparação é importante, porque é a base para uma narrativa que coloca o ataque à vítima como uma vingança pela ‘rejeição’ anterior.

Eu não acho que isso é uma tentativa deliberada de culpar a vítima. Nenhum dos relatos é simpático a Ali: a história ‘ele a empurrou de uma varanda porque ela rejeitou suas investidas’ é usada para explicar o comportamento dele, não para justificá-lo. Mas isso ainda é um problema, porque depende de uma suposição que é de fato usada para culpar as vítimas, e mais comumente coloca na mulher o ônus de prevenir ou conter a violência masculina. Presume-se que os homens ‘naturalmente’ se sentirão ofendidos quando as mulheres não retribuirem seu interesse sexual. Esse é apenas um dos axiomas da cultura do estupro: ensina-se a toda menina que ela deve saber como lidar com isso. Ela deve aprender como ‘recusá-lo minimamente’, caso ele interprete a falta de interesse dela como uma provocação. A falta de habilidade dos homens em tolerar a rejeição é igualmente um tropo comum nos relatos sobre homicídio doméstico, em que muitas vezes se diz que os criminosos ‘perderam a cabeça’ depois que a mulher terminou o relacionamento.

Podem essas narrativas ser mudadas? Feministas tentaram: em 2018, por exemplo, o grupo Level Up produziu novos manuais sobre como relatar homicídio doméstico direcionados à mídia britânica, e em 2019, elas conseguiram que os manuais fossem endossados pelos reguladores de imprensa IPSO e IMPRESS. Ainda que os jornais não sejam obrigados a seguir os manuais, o endosso de reguladores realmente os coloca como recomendações para ‘boas práticas’, e na teoria eles devem fortalecer o argumento de qualquer uma que reclame sobre uma violação.

Mas reclamar nem sempre é uma solução. Provavelmente é mais efetivo em um caso tipo a história ‘Eu dei um tapa na JK’, do The Sun, quando o problema é um único jornal que passa dos limites em uma ocasião específica. Não é tão útil quando o seu alvo de reclamação aparece em qualquer versão jornalística dos mesmos eventos.

Fórmulas como ‘incidente isolado’ e ‘rejeitou/desdenhou suas investidas’ não são pouco usuais ou sensacionalistas: são antes normalizadas e presumidas. Você não pode reclamar que essas fórmulas passam do limite, porque elas são o limite; elas são clichês empregados por redatores (ou copiados e colados de outras fontes) porque são vistos como maneiras óbvias de contar um certo tipo de história. Claro que é importante tentar conscientizar, mas quando até mesmo o Ministério Público da Coroa, a instituição responsável por processar os criminosos, fala em ‘homens desprezados’ e ‘investidas inapropriadas’, está evidente que ainda temos um longo caminho para percorrer.

 Por Deborah Cameron (University of Oxford)

******Traduzido e adaptado para o Contxt por Amanda Diniz Vallada e Joana Plaza Pinto

Publicado originalmente no blog Language: a feminist guide em 11 de julho de 2020. Aparece aqui com autorização da autora. Fica vedada a reprodução

1As notícias que fazem parte da análise se referem a crimes ocorridos no Reino Unido.